Seu primeiro ano foi uma lua de mel. Ouvia as denúncias contra seus ministros e os demitia, se fosse o caso. Depois de vários mandatos presidenciais em que a opinião pública sentira uma certa leniência em casos tais, Dilma Rousseff adquiriu a fama de gestora rigorosa e honesta. Nos anos seguintes, porém, essa imagem cedeu lugar à de intransigente, mal humorada e até ríspida.
Mas essas imagens opostas se referem à mesma personalidade, ou postura. Dizem respeito ao mesmo referente: uma presidenta séria, pouco disposta a brincadeiras, exigente com o Tesouro, isto é, com "o seu dinheiro, o meu, o nosso", avessa a concessões em matéria de princípios - como o Código Florestal -, acreditando na coisa pública e inimiga dos malfeitos, nome que dá à corrupção. Nem a mídia mais hostil a seu governo e partido questiona sua honestidade. Num país em que a discussão política é pobre a ponto de se concentrar numa nota só, que é acusar o adversário de desonesto, ela é criticada por suas políticas e por sua eficiência, não por sua moral.
O problema é que os elogios e críticas incidem sobre o mesmo traço de personalidade - ou postura. Distingo. Traço de caráter pertence à pessoa. Incorporou-se à sua psique, por educação ou decisão. Postura é consciente, é mais racional. No seu caso, parece que psicologia e ética correm na mesma direção. No começo do mandato, esse rigor, que também se exprime num apreço à liturgia do cargo sem precedentes faz bastante tempo, dado que inclui uma seriedade quase puritana, era louvado. Tínhamos uma dirigente que não fazia negócios. Com o tempo, tornou-se tema de preocupação e mesmo de crítica. Ela não cede. Para votar uma lei, faz o mínimo de acordos. Isso estressa as relações com os parlamentares e os partidos. Mas aparentemente tem dado certo, isto é, as derrotas em alguns projetos de lei não trouxeram resultado pior do que teria sido aceitar desfigurá-los.
Queremos ou não uma política com ética?
Isso tem um custo político, que ela paga. Não é pragmática, queixam-se os empresários. Não gosta de política, reclamam políticos e colunistas. Nos dois casos, isso significaria que não escuta o outro, não quer ter notícias más, não faz concessões. Mas é tênue a linha separando essa descrição, que delineia um governante no limite do autoritário, e a do político sem princípios. Fazer uma negociação, que é coisa boa, está a apenas duas ou três letras de fazer uma negociata. Onde ficam as fronteiras da negociação, legítima, necessária na política, e da negociata, sua caricatura, sua negação?
Muitas críticas a Dilma, penso eu, exprimem um problema nosso, de nossa sociedade, não exatamente dela. Queremos ética na política, mas sabemos que na prática não é bem assim. Desconfiamos que a ética, na política, não entrega os bens desejados. Por isso, prestamos homenagem, da boca para fora, à moral, mas - pragmaticamente - aceitamos infrações a ela. Isso não é raro. Já vi pessoas que se indignavam com a desonestidade vigente mas sobrefaturavam a conta que emitiam. Essa divisão na personalidade, essa contradição ética entre a fala honesta e a prática desonesta, percorre a sociedade brasileira de cima em baixo. Ninguém esquece o senador goiano que era um dos críticos mais veementes da corrupção petista, estando, ele próprio, envolvido em negócios que lhe custaram o mandato.
Mas, na política, a contradição entre ética e prática apenas se torna mais evidente às críticas. Nem sei se é maior, ou mais visível, do que os malfeitos de nosso cotidiano. Muitos dos que criticam políticos agem, na vida pessoal, da mesma forma que os criticados. Com frequência maior do que seria aceitável, o político se torna bode expiatório dos microcorruptos do cotidiano.
Não seria bom aproveitarmos esta ambivalência em relação ao caso Dilma para refletir sobre a ambivalência da própria sociedade brasileira quanto à ética na sociedade e na política? O movimento com esse nome tomou as ruas do Brasil há bons vinte e dois anos, por ocasião do impeachment de Fernando Collor. Pareceu produzir bons resultados, como a queda do presidente e a cassação de deputados. Mas parou aí. Continuamos acreditando que seria bom alcançarmos a ética, mas que é mais seguro termos uma prática que tolera infrações, pequenas e enormes, em nome do resultado. A ética é o ideal, mas a prática desonesta é a realidade. Pregamos a ética para os outros. Queremos que eles se demonstrem éticos, mas nos reservamos o privilégio de ser pragmáticos em benefício próprio. Não que nossa sociedade seja sistematicamente desonesta. A desonestidade é exceção. Mas é uma exceção que se manifesta em momentos estratégicos da vida política - e social. Não aparece em questões poucas, porque menores - aparece em questões poucas, porque cruciais.
Mudar isso é possível. Campanhas, como a do Ministério da Justiça contra as mini corrupções de cada dia, educam. Mostram o nexo entre o ilícito meu ou seu, e o ilícito de nossos representantes. Porque quem nos representa, porque foi eleito por nós, nos representa também como somos. O limiar da honestidade precisa ser levantado, na vida de todos. E além disso é viável, ainda que difícil, um pacto entre políticos. Seria possível políticos honestos, de vários partidos, acordarem que não aceitam o apoio da banda podre. Isso poderá gerar um ou dois anos de turbulência, mas dará efeito. E então saberemos distinguir se um governante merece ser criticado porque se fecha a negociações - ou elogiado porque se recusa a negociatas, que são coisas diferentes, sendo uma a essência da política, a outra a essência da corrupção.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.