Tereza nasceu em 1946; e subiu aos céus no dia de ontem: 26 de junho (dia em que, há 26 anos atrás, me casei), despedindo-se de um país e uma cidade que amou. Ela amou, amou, amou, amou, e nunca deixou de amar. Amou a natureza... e amou os pobres. Precisa dizer mais? Teresa ontem se apresentou a Deus do jeito que veio, do jeito que foi criada, em toda a sua integridade; alguma coisa nela, nunca mudou, ela nunca deixou mudar; como que para garantir que Ele, quando chegasse a hora, pudesse reconhecê-la. E foi fácil; neste caso - por certo - foi fácil: o Pai olhou para ela, e se viu: Ele mesmo estava lá, inteirinho...
Ruth Bolognese recebeu
este texto de Teresa Urban, o último que ela escreveu antes de falecer ontem à
noite. É uma reflexão sobre os acontecimentos destes dias. Lúcida, afiada,
procura mostrar à amiga o caráter do movimento que levou milhares às ruas.
(publicado, em 27/06/2013, no blog de Fábio Campana. Veja o link: http://www.fabiocampana.com.br/2013/06/ultimo-texto-de-teresa-urban/ )
(publicado, em 27/06/2013, no blog de Fábio Campana. Veja o link: http://www.fabiocampana.com.br/2013/06/ultimo-texto-de-teresa-urban/ )
Ninguém mandou você perguntar
“Olá
Ruth, estou sem falar há dez dias, não por perplexidade mas por ordens médicas.
O silêncio, neste barulho todo, me obrigou a pensar mais do que agir e foi uma
experiência muito nova para mim. Montar um quebra-cabeças destes é difícil,
amiga, porque a primeira coisa que descobri é que nem mesmo falamos a mesma
língua (hoje li em algum lugar que não tem tecla SAP para isso). Abrimos um
fosso tão grande entre o que chamamos de povo brasileiro e as elites (governo,
políticos, ricos, intelectuais, jornalistas, esquerdistas, nós) e agora estão
em nossa frente, serpenteando pelas ruas das cidades, anunciando sua
existência.
Bom, quanto tempo faz que a gente não se pergunta como as
pessoas se sentem nas cidades massacrantes, nos ônibus entupidos, na falta de respeito
de motoristas com pedestres, de motociclistas com motoristas, de professor com
aluno, de aluno com professor, de jovem com velho, de velho com jovem, de
meninos de rua com gente de bem, de trabalhadores endividados pelo consumo
fácil, de falta de amor, de médicos gelados como pedra, de gente entediada, de
tráfico, de meninos mortos na periferia, de prisões lotadas, de crimes
impunes…longa lista.
Lembra,
Ruth, como foi o êxodo rural dos anos 70? Perderam-se as raízes. as cidades
viraram amontoados humanos de um nível crescente de hostilidade, mas a gente
vai levando.
Vizinhos,
comunidade, amigos, partido, Estado que protege os mais fracos??? Bobajada,
mano velho, vamos tocando, tem time de futebol. Tenho pensado muito em algumas
palavras: pertencimento e desgarrados
Bem,
deu no que deu, não somos um país, somos um monte de “eu”, cada um com seu
cartaz, seu facebook e nada que os ligue.
Pode
ser que um monte de eu se sinta pertencendo a alguma coisa, assim junto na rua…
A
crise é de representatividade? É, mas não tão simples que uma reforma
partidária resolva.
Lembrei
muito de uma cena antiga, quando contestávamos a instalação da Renault nos
mananciais e alguém perguntou quem representava a empresa naquela discussão. E
um velhinho sem dentes, paletó de mangas curtas que não conseguiam esconder os
rotos punhos da camisa, levantou o braço e disse: eu represento a Renault.
Nunca esqueci disso porque não entendi qual a crença que levou aquele
homenzinho a fazer isso (ninguém mandou, ele estava muito sozinho ali), mas
acho que foi um momento de ousadia incrível.
Dizer
eu me represento é mais ousado ainda e muito mais perigoso, Ruth. Ninguém
representa ninguém naquela multidão, talvez depois, na foto no facebook,
troquem suas representatividades.
Chegamos
a isso por negligência e prepotência e agora é um trabalho danado de grande
voltar a pensar em coisas pequenas para fazer contato com os alienígenas. Quem
sabe aquele dedinho do ET de Spilberg tocando o dedo do menino ajude…
Agora,
o que é mesmo ruim nesta história é o que a brava imprensa brasileira fez:
criou uma nova espécie, sem nenhum estudo, nenhuma base científica, sem nenhuma
pergunta: homo sapiens vandalus lamentavilis. Ruth,que vergonha tenho de ser
jornalista. Quem são, afinal, aqueles meninos que não temem a polícia, que
devolvem as bombas, que chutam tudo com fúria, que saem das lojas saqueadas com
sacolas e somem na escuridão? Quem são, quantos são, onde vivem, de onde
surgiram? São brasileiros ou só são brasileiros os que serpenteiam sem rumo?
São
os dentes da fera, Ruth, só os dentes. O resto, a gente não conhece.
Enquanto
continuarem dividindo o país entre manifestantes e vândalos ou, como ontem na
OTV, uma repórter mais perdidinha dizia, protestantes e fanáticos, não vai dar
para entender o que de fato acontece.
Outro
pior é a legitimização e o aplauso à repressão policial.
Não
sei se você viu, mas ontem havia uma galera na frente do Palácio Iguaçu (pra
Curitiba, bastante gente, umas 10 mil pessoas?) quietos, sem nada que dizer, às
vezes cantavam algo tipo “sou brasileiro com muito orgulho” exigiam caras e
cartazes para a câmara de TV, andavam de um lado para o outro e só, só, só. Não
sei porque estavam ali. Passaram reto pela Câmara, pela Prefeitura, estavam ao
lado da Assembléia Legislativa mas pararam na frente do Palácio às escuras.
Ninguém para falar, nem por eles nem para eles nem com eles. Foi uma cena muito
surreal, que durou tempo, debaixo de chuva e frio.
De
repente, do nada, o Palácio do Governo começa a vomitar uma enfurecida tropa de
choque que sai jogando bomba, atirando bala de borracha sem mais.
Joãozinho
estava lá, Thiago estava lá, Dani, filha de Clovis, estava lá. E mais uma
galera de meninos que só estavam lá. Pelo tanto de luz de celular, era pra
mostrar depois no face. Só então, na correria do depois, que os dentes surgiram
na escuridão e começaram a morder a propriedade, pública ou privada, não
importava.
Bom,
Rurh, quando vi aquilo – polícia, cachorros, cavalos, bombas e os meninos
correndo em desespero, chutando e quebrando tudo -, depois de muito, mas muito
tempo na minha vida marvada, chorei.”
T